O netinho
Gonzalo não prestava muita atenção nos males da avó. Não tinha tempo. Por David Coimbra Ninguém estendeu por que Gonzalo desistiu da herança da avó e largou o bom emprego que tinha e sumiu da cidade, sem destino, andarilho vagabundo. Eu entendi. Verdade que não se tratava de herança importante, nenhuma fortuna, mas os outros netos lutaram feito hienas famintas por ela. E, de todos, Gonzalo é quem tinha mais direito. Sobretudo ao apartamento. Gonzalo morou naquele apartamento a vida toda, ele e a avó, só os dois. A mãe, depois de separada, não podia sustentar os três filhos, então, mal Gonzalo nasceu, foi deixado aos cuidados da avó. Que não reclamou. Ao contrário, Gonzalo tornou-se a razão de sua vida. Fazia tudo por ele, ela o amava com uma doçura jamais dedicada a um filho. Gonzalo cresceu em meio aos mimos da avó, tinha chazinho quente quando adoecia, tinha comidinhas especiais todos os dias. Dela, ele merecia tudo, embora tudo que ela pudesse dar não fosse muito. A avó vivia da pensão de viúva que recebia de um montepio. Com aquele dinheirinho contado, sustentou o neto, pagou-lhe a faculdade e, mesmo depois de ele estar trabalhando, comprava-lhe méis de lã para o inverno e biscoitos recheados para o lanche da tarde. Conheci a velhinha. Era gordinha e pequena, em tudo redonda. Uma avó de história em quadrinhos, uma perfeita Dona Benta, sempre sorrindo atrás dos óculos, sempre mexendo uma panela na cozinha, especialista em quitutes e histórias do tempo em que as moças coravam e os moços faziam mesuras. Gonzalo gostava dela, claro que gostava, mas nunca chegou a ser um neto afetuoso. Recebia os carinhos da valha com indiferença típica da juventude. Convertido em um espigado rapagão, continuava vivendo com a avó, e ela continuava a cumular-lhe de atenções, apesar de já estar bastante doente. Volta de meia, o ar lhe faltava e ela se sentia nas vasas da morte, os pulmões ameaçando explodir. Decidiu precaver-se. Temendo um dia ter de internar-se com urgência no hospital, passou a economizar para pagar o médico. Todos os meses, retirava um naco da pensão, fazia um canudinho com um atílio e guardava num compartimento que havia na parte de cima do roupeiro. Gonzalo não prestava muita atenção nos males da avó. Não tinha tempo. Trabalhava de dia, estudava de noite e nos finais de semana ia para a casa da namorada. Não percebia que a velhinha piorava a cada semana. Uma noite, ela estava especialmente mal, e nem assim Gonzalo reparou. Chegou em casa perto da meia-noite, cansado e de mau humor. A velhinha ouviu o barulho na fechadura da porta, levantou-se com alguma dificuldade, arrastou-se até a cozinha e preparou um jantar quente para o neto. Levou o prato fumegante e um copo de suco de laranja até o quarto, onde ele dormia de roupa de tudo, as costas apoiadas na cabeceira da cama. Acordou-o com um beijo. Ele abriu os olhos, viu a comida e, sem dizer palavra, tomou o prato e começou a comer. Ela sorriu e lhe deu boa-noite. Gonzalo nem respondeu, estava mastigando. Aquela noite, a velhinha não dormiu. A falta de ar a sufocava angustiantemente. Pela manhã, chegou a pensar em não preparar o café para o neto. Nunca, em 20 anos, deixara de lhe fazer café. Não queria decepcioná-lo, não nesses dias em que ele trabalhava e estudava tanto. Levou 10 minutos para erguer-se da cama, arrastou-se pelo corredor e foi para a cozinha. Quando Gonzalo saiu do banho, o café estava na mesa. Mas a velhinha se sentia arrasada. Pediu: - Meu amor, não vá trabalhar hoje. Fica um pouco com a avó... Gonzalo riu: - Ih, não dá. Estou cheio de trabalho. - Só um pouquinho. Liga pra eles... - Não dá, vó. Não dá. Até estou atrasado. Tchau. Fui. Foi. Saiu sem nem escovar os dentes. Voltou às onze e meia, cansado como sempre. Encontrou a avó caída num canto do quarto, no chão, ao lado do banquinho no qual ela subia para alcançar o topo do roupeiro. Na mão direita, a trouxinha de dinheiro que ela guardava para pagar o hospital. Morrera sozinha, sufocada, decerto pensando no neto, decerto chamando por ele. Depois do enterro, os irmãos disseram que Gonzalo podia continuar morando no apartamento. Ele não quis. Foi embora, ninguém sabe para onde. Largou tudo, ninguém sabe por que. Eu sei. Mantra - Nando Reis Quando não tiver mais nada |
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